31/07/2024 Atualizado em : 20/08/2024

Regulamento da Advocacia: desafios e soluções para a ausência de regulamentação para PLD no Brasil 

31/07/2024 Atualizado em : 20/08/2024

A ausência de regulamentação específica para PLD na advocacia no Brasil tem gerado discussões sobre os riscos e vulnerabilidades da profissão, especialmente em relação à lavagem de dinheiro. Em entrevista exclusiva, Fernanda Fischer Casagrande, sócia da área de Compliance, Gestão de Riscos e Investigações do escritório HNaves Advogados, e mestre em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas, aborda as principais dificuldades enfrentadas pelos advogados, o impacto dessa lacuna regulatória e as estratégias para equilibrar a conformidade com a confidencialidade dos clientes. 

IPLD: Em sua opinião, quais são as principais vulnerabilidades que a profissão de advocacia enfrenta em relação à lavagem de dinheiro no Brasil? Como a ausência de regulamentação específica contribui para aumentar esses riscos e quais medidas poderiam ser implementadas para mitigar tais vulnerabilidades? 

Fernanda: Uma das principais vulnerabilidades na prática da advocacia consultiva relacionada às operações listadas no artigo 9º, parágrafo único, inciso XIV da Lei 9.613/98 é justamente a falta de parâmetros aptos a definir quando a atuação do advogado é legítima/neutra ou caracteriza cumplicidade ao crime do cliente. O cenário hoje é de ausência de mecanismos para que o advogado se proteja do fato de sua conduta ser considerada criminosa. Importante ressaltar que não estamos a tratar do advogado que conscientemente se envolve no ilícito, mas aquele cujo envolvimento não é explícito.   

O que temos visto é o desalinhamento entre os vários atores do cenário de prevenção à lavagem de dinheiro (autoridades) acerca do que é esperado do advogado como diligência para evitar seu envolvimento na prática do crime pelo seu cliente. Sua falta de diligência, por exemplo, pode ser considerada criminosa – mas que diligência dele se espera? Que controles ele deve adotar? Não sabemos. Não está escrito em lugar algum. A conduta dele é neutra? Se não, quando deixou de ser?  

Os advogados não podem ser obrigados a comunicar transações suspeitas se estas forem obtidas em circunstâncias relacionadas ao direito de defesa. Entretanto, quando uma conduta potencialmente ilícita de um cliente não se der nessas circunstâncias, o que se espera do advogado quando dela tiver conhecimento? O dever de abstenção não é suficiente para proteger os advogados – afinal nem sempre evidente é a intenção espúria do cliente ou a ilicitude da operação. E até que ponto o auxílio ao cliente faz com que a atuação do advogado passe a ser considerada uma conduta de risco proibido pelo ordenamento jurídico? Não há resposta.  

Se houvesse parâmetros e o advogado os tivesse seguido, então ele estaria seguro quanto à sua atuação.  

Outra vulnerabilidade advinda da ausência de regulamentação é a falta de diretrizes/normas de como proceder quando o advogado se descobrir envolvido em um ilícito, mesmo antes de qualquer persecução por autoridades. O advogado que auxilia em operação que aparentemente é legítima, mas depois de sua contribuição a descobre ilícita, não tem mecanismos para sua proteção, para esclarecer que não houve envolvimento consciente de sua parte. Afinal, o reporte pode ser considerado uma violação de sigilo profissional e o seu silêncio pode ser considerado cumplicidade. Terá de enfrentar a tormentosa incerteza sobre futura investigação e de como será entendida a sua conduta pelo órgão persecutório. 

IPLD: A ausência de regulamentação específica para a advocacia no Brasil tem sido um ponto de discussão recorrente. Quais são os impactos mais significativos dessa lacuna regulatória tanto para os profissionais da área quanto para a sociedade em geral? 

Fernanda: A alteração legislativa que incluiu no texto legal a sujeição dos profissionais prestando consultoria ou assistência nas operações listadas no artigo 9º, parágrafo único, inciso XIV aos mecanismos obrigatórios de prevenção à lavagem de dinheiro trouxe uma celeuma em relação à abrangência dessa regra aos advogados.  

Ocorre que, ainda que a Lei não tenha expressamente mencionado a classe de advogados, é inegável que estes se enquadram na categoria, o que fica mais evidente ao considerar o momento histórico em que se deu a alteração legislativa, qual seja, logo após o Relatório de Avaliação Mútua do GAFI de 2020 que apontou a lacuna quanto à sujeição dos advogados – e que foi novamente ponto de atenção do Relatório deste ano.  

A OAB, entretanto, afasta esse entendimento, tendo, por duas vezes, rechaçado a publicação de qualquer regulamentação acerca da questão em relação à classe por afastar a aplicação da norma aos advogados. O cenário brasileiro hoje é, portanto, de afastamento da norma aos advogados pelo órgão de classe, mas ainda há divergências entre os diversos atores deste cenário, incluindo autoridades de controle e autoridades de persecução – o que faz com que a aplicação da Lei seja ainda incerta e submeta o exercício da advocacia consultiva nas referidas operações à insegurança jurídica acima referida. 

O que, em primeira análise, parece ser a defesa das prerrogativas dos advogados, se mostra, na prática, como ausência de mecanismos de proteção àqueles que legitimamente prestam seus serviços, os quais podem se ver envolvidos em operações de lavagem de dinheiro de seus clientes, sem saber ao certo o que deles se espera. Que diligências são esperadas? Quais controles devem implementar na sua prática? Quando a atuação deixa de ser neutra e passa a ser proibida?  

Recusar a aplicabilidade da lei sem prover qualquer tipo de regulamentação, implica em uma falsa sensação de segurança, visto que a atuação do advogado como lícita ou proibida vai depender de como ela é entendida pelos parâmetros subjetivos do aplicador da Lei. É como um abandono do advogado ao pensamento da autoridade que faz julgamento sobre sua conduta. 

IPLD: Um dos grandes desafios no campo do compliance é equilibrar o cumprimento das regulamentações com o compromisso de manter a confidencialidade dos clientes. Como você enxerga esse equilíbrio na prática? Quais estratégias você sugere para que os advogados possam cumprir suas obrigações legais sem comprometer a confidencialidade essencial ao exercício da advocacia? 

Fernanda: Apesar de parecer complexo, esse equilíbrio é facilmente encontrado ao entender a natureza da atuação típica do advogado.  

O “advogado é indispensável à administração da justiça”, como traz a nossa Constituição Federal, em seu artigo 133. Ora, sendo o advogado indispensável à administração da justiça, qualquer medida que abale a confiança do cliente em seu advogado caracteriza prejuízo ao direito de defesa – logo, prejuízo ao alcance da Justiça. Sob esta base, o sigilo profissional é inerente ao exercício da advocacia, sem o qual estar-se-ia aniquilando o seu papel na sociedade e restringindo o acesso à Justiça. Esta confidencialidade é inegociável.  

Os advogados de consultoria vinculada a processo judicial, administrativo, tributário, arbitral e mesmo na justiça negocial, assim como – indo além – advogados cujo aconselhamento jurídico não se dá em âmbito processual, mas sim se destina a evitar litígios e persecuções futuras estariam exonerados das obrigações da Lei em razão da confiança da relação cliente e advogado. É evidente que a mitigação do sigilo profissional aqui compromete o direito de defesa do cliente e desequilibra o balanço do cidadão diante do sistema de Justiça.   

Outra é a natureza, entretanto, da assistência material às operações listadas na Lei. A atuação do advogado aqui não é típica, não se relaciona com o direito de defesa ou administração da Justiça. A consultoria nestas operações pode ser prestada, inclusive, por outros profissionais – estes sujeitos às obrigações legais de prevenção à lavagem. Aqui cabe a mitigação do sigilo profissional – se regulamentado! – em benefício de todo um ecossistema de prevenção à lavagem de dinheiro que, acertadamente, sujeita as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, nas operações do rol legal – e não há sentido excluir os advogados desta categoria.  

Fazendo essa diferenciação, o problema está praticamente resolvido. A questão é que há muita confusão exatamente sobre este alcance da Lei. Como exemplo, alguns argumentos são no sentido de que sujeitar os advogados à comunicação de operações suspeitas seria declarar “a morte da advocacia criminal” – quando, na verdade, esta seria a classe talvez menos impactada, afinal sua atuação dificilmente será descolada do direito de defesa.   

IPLD: O relatório do GAFI destacou a insuficiente fiscalização de advogados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Qual é a sua opinião sobre o papel da OAB na regulamentação e fiscalização dos advogados e como você acredita que a OAB poderia atuar para prevenir a lavagem de dinheiro dentro da advocacia? 

Fernanda: E concordo com o GAFI. Como eu disse, afastar a abrangência da lei sem, entretanto, prover parâmetros para identificar a atuação legítima é permitir um ambiente de insegurança jurídica para a prática da advocacia consultiva.  

Insistindo em uma regulamentação, eu entendo que o caminho escolhido por Portugal me parece ser o mais acertado no cenário brasileiro: uma regulamentação clara e forte do próprio órgão de classe, o qual fará a interface com o órgão de controle. Optando por esta abordagem, os advogados restam amparados pela regulamentação e pela comunicação com o órgão que bem conhece suas prerrogativas, não estando o advogado à mercê do órgão de controle. Neste cenário, a OAB estaria a verdadeiramente proteger a atuação legítima do advogado em sua plenitude, oferecendo a segurança que hoje não temos.  

Mas como já tivemos, em duas oportunidades, a negativa pela OAB de uma regulamentação específica, passemos para a segunda opção, que, inclusive, foi trazida pelo próprio Conselho Federal da OAB em abril de 2021. Na ocasião, que era justamente a deliberação acerca da sujeição dos advogados à Lei, apesar de afastar a Proposta de Provimento, o Conselho reconheceu a conveniência de uma autorregulamentação com abordagem recomendatória, a qual disporia de boas práticas aptas a prevenir o envolvimento de advogados em práticas de lavagem de dinheiro, a exemplo da abordagem adotada pelo órgão de classe dos advogados americanos. Precisamos, pelo menos, da elaboração e aplicação deste guia o quanto antes. 

Conheça a entrevistada 

Fernanda Fischer Casagrande 

Sócia da área de Compliance, Gestão de Riscos e Investigações do escritório HNaves Advogados e mestre em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas. Fernanda presta auxílio especializado a seus clientes na tomada de decisões estratégicas relacionadas a questões de conformidade regulatória, riscos do negócio e mitigadores, programas de compliance anticorrupção e de prevenção à lavagem de dinheiro, medidas de governança e investigações corporativas.