18/04/2024

Atualização de procedimentos de PLD-FTP para notários e registradores – Parte 1 

18/04/2024

A inclusão dos notários e registradores como sujeitos obrigados no sistema de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (PLD-FTP), estabelecida pelo Provimento 88/19, marcou um passo significativo na PLD-FTP no Brasil. Este movimento foi reforçado e ajustado recentemente pelo Provimento 161/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o intuito de aprimorar e corrigir os desafios enfrentados desde a implementação das primeiras diretrizes.  

Em entrevista exclusiva para o IPLD, Hercules Benício, tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF e vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil (seção DF), discute a importância do Provimento 161/2024 e o impacto das recomendações do GAFI para o setor de notários e registradores. Nesta primeira parte da entrevista, Hercules aborda a relevância da atualização dos procedimentos de PLD-FTP para notários e registradores e como as recentes atualizações visam corrigir e aprimorar os desafios identificados desde a inclusão desses profissionais como sujeitos obrigados. 

IPLD: Considerando sua experiência como tabelião e referência no setor notarial, como você avalia a importância do Provimento 88/19 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reconheceu os notários e registradores como sujeitos obrigados no sistema de PLD-FTP? 

Hercules: O Provimento CNJ 88/2019, que entrou em vigor em fevereiro de 2020, foi decisivo para que uma alteração legislativa ocorrida por força da Lei 12.683, de julho de 2012, passasse a produzir efeitos com relação à inclusão de notários e registradores como sujeitos obrigados no sistema PLD-FTP. 

Nada obstante as atividades financeiras constituam o principal setor de cooperação para a prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo, há atividades e profissões não financeiras que, em muito, podem contribuir com o sistema de PLD-FTP. Dentre essas, incluem-se notários e registradores. 

O compartilhamento de responsabilidades entre o Poder Público e setores da atividade econômica utilizados para a lavagem de dinheiro (sejam eles financeiros, ou não) decorre do fato de que o combate dos crimes de lavagem não deve ficar restrito aos órgãos do Estado, mas também deve envolver toda a sociedade, considerados os abrangentes desdobramentos desses crimes. 

Como certos setores da economia (como as atividades notariais e de registro) são eventualmente utilizados como canal para a lavagem de capitais, o que acaba por contaminar as atividades lícitas desenvolvidas por esses setores, é adequado fazer com que assumam responsabilidades no combate de uma atividade delituosa que os atinge diretamente, passando tais atividades e profissões a figurar como sujeitos obrigados a cooperar no sistema de PLD-FTP.  

Em outras palavras, a participação direta de setores estratégicos que normalmente são utilizados no processo de lavagem de dinheiro, na cooperação com o sistema de PLD-FTP, combate a ocorrência de crimes e, por conseguinte, contribui para a manutenção da credibilidade, da reputação e da estabilidade desses setores. 

Na medida em que notários e registradores, pela proximidade com os seus clientes, dispõem de maiores condições para diferenciar operações lícitas de operações ilícitas, o estabelecimento de um regime de cooperação constitui um importante fator de inibição da utilização das atividades extrajudiciais na lavagem de dinheiro. 

Vejamos uma situação prática envolvendo a utilização de um Tabelionato de Protesto para a lavagem de dinheiro, fato que evidencia a relevância e a seriedade da inclusão de notários e registradores no sistema de PLD-FTP.  

Figure a seguinte cena: o líder “L” de uma organização criminosa, após arrecadar valores diversos com a venda de substâncias entorpecentes, intenciona depositar a grande soma de recursos oriundos do tráfico de drogas em conta bancária. Sabedor de que as instituições financeiras cooperam com o Poder Público (reportando, à Unidade de Inteligência Financeira, as operações suspeitas), e sabedor, também, de que os tabeliães de protesto ainda não faziam parte do sistema PLD-FTP, o líder criminoso “L”, com muita astúcia, combina com o comparsa “C” que ele líder “L” emitiria uma nota promissória a favor de “C” (suposto credor), em decorrência de uma suposta dívida. O “devedor L” não paga a nota promissória na data aprazada, fato esse que permite ao “credor C” encaminhar o título ao Tabelionato de Protesto.  

Ao receber a intimação por falta de pagamento, o “devedor L” liquida, dentro do tríduo legal, o título diretamente no Tabelionato, usando recursos em espécie. O Tabelionato recebe o dinheiro, não questiona sua origem e o deposita em sua própria conta, o que faz com que a instituição financeira também não questione a origem dos recursos, já que são provenientes de liquidação de título em Tabelionato de Protesto (operação que não se mostra atípica). Por fim, o Tabelionato de Protesto credita o dinheiro na conta do “credor/comparsa C”, o que, naturalmente, justifica a origem daquele recurso. Desta maneira, a operação simulada assume aparência de real, e não desperta a atenção dos bancos quando da colocação dos valores no sistema financeiro. 

Diante de tais fatos, por mais que o tabelião de protesto não seja eventualmente responsabilizado (civilmente, administrativamente ou penalmente) por participação no esquema de lavagem de dinheiro, indaga-se: caso os fatos narrados fossem divulgados na imprensa, como ficaria a reputação do Tabelião de Protesto, em sua comunidade, ao carregar a pecha de facilitador da lavagem de capitais? 

Por força do Provimento CNJ 88/2019, os serviços notariais e de registro passaram a monitorar, selecionar e analisar operações atípicas que configurem, ou não, possíveis indícios de prática de LD-FTP ou de infração correlacionada. O referido ato normativo foi mencionado positivamente no Relatório Final da 4ª Rodada de Avaliação Mútua do Brasil pelo GAFI, destacando-se, por exemplo, a exigência de nomeação de oficial de cumprimento responsável pela comunicação à Unidade de Inteligência Financeira e pela promoção de treinamento para os colaboradores da serventia. 

A cooperação certamente fortalece, ainda mais, a credibilidade e a boa reputação de notários e registradores perante a comunidade em que desenvolvam as suas atividades, como promotores de segurança e eficácia dos atos jurídicos. 

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IPLD: Desde a implementação do Provimento 88/19 do CNJ, quais foram os principais desafios enfrentados pelos notários e registradores na adaptação a essas novas responsabilidades? E, por outro lado, quais avanços significativos você percebe que essa inclusão trouxe para o sistema de PLD-FTP no Brasil? 

Hercules: Como dito, o Provimento CNJ 88/2019, que efetivamente incluiu notários e registradores no sistema de PLD-FTP, entrou em vigor em fevereiro de 2020, representando importante inovação nos procedimentos internos de um serviço extrajudicial, envolvendo estabelecimento e implementação da política de PLD-FTP. 

Sucedeu, contudo, que bem no instante em que as novas regras de PLD-FTP entraram em vigor, deflagrou-se, no mundo, a Pandemia do Coronavírus (Covid-19), impondo novos aprendizados a todos os profissionais e atividades, representando relevante desafio a ser transposto para a adequada prestação de serviços. 

Vários outros desafios se apresentaram na implementação do Provimento CNJ 88/2019, tais como: (I) divergências interpretativas quanto ao sentido e alcance das novas regras; (II) excessiva quantidade de hipóteses de comunicação automática; (III) necessidade de adaptação do Siscoaf para as peculiaridades das atividades notariais e de registro e (IV) ausência de feedback quanto ao (des)acerto das comunicações feitas ao Coaf. 

Com relação às divergências interpretativas, verificou-se necessidade – por exemplo – de especial capacitação para estabelecer, com maior clareza, a distinção entre a expressão “moeda corrente” e a expressão “dinheiro em espécie”. Assim sendo, quando, em uma escritura pública, consta que o comprador pagou R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) em moeda corrente, tal circunstância não se confunde com a hipótese de comunicação automática referente a pagamento por meio de “dinheiro em espécie”. 

Houve, também, a necessidade da edição do Provimento CNJ 90/2020, para explicitar que: “não se negará a realização de um ato registral ou protesto por falta de elementos novos ou dados novos”, estipulados no Provimento CNJ 88/2019. 

Com relação ao dispositivo que estabelece que “as comunicações de boa-fé, feitas na forma prevista no art. 11 da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, não acarretarão responsabilidade civil, administrativa ou penal” (art. 39 do Provimento CNJ 88/2019 e atual art. 176 do Provimento CNJ 149/2023), tal regra gerou, em alguns notários e registradores, comportamento defensivo com excessivo número de comunicações banais, sem efetiva análise do caso. 

A equivocada interpretação se deu a partir do seguinte raciocínio: “na dúvida quanto à existência, ou não, de indícios configuradores de infração relacionada a LD-FTP, é melhor comunicar, pois estar-se-á de boa fé e não haverá responsabilização ao comunicante”. 

Tal postura defensiva está equivocada. Na dúvida, deve-se analisar melhor a situação e somente comunicar ao Coaf quando, após adequado empenho, verificar que a operação (ou proposta de operação) reúne, efetivamente, indício de prática de LD-FTP ou de infração correlacionada

De todo modo, a inclusão de notários e registradores como sujeitos obrigados trouxe avanços significativos para o sistema de PLD-FTP no Brasil, contribuindo com sua expertise para a detecção de operações atípicas. Ademais, representou um avanço na conformidade do Brasil quanto ao atendimento das Recomendações do GAFI, para efetividade do sistema PLD-FTP

IPLD: Em sua opinião, quais fatores contribuíram para a necessidade da edição do Provimento 161/2024 pelo CNJ, que atualiza as normas de prevenção à lavagem de dinheiro para notários e registradores? Como esse novo provimento busca endereçar os desafios previamente identificados e quais são suas expectativas em relação aos resultados dessa atualização normativa? 

Hercules: Em 24 de janeiro de 2022, a Diretoria de Inteligência Financeira do COAF expediu a Nota Técnica nº 107152 – COAF, por meio da qual apresentou panorama da qualidade das comunicações recebidas de comunicantes do Segmento CNJ – Notários e Registradores, no período de 03/02/2020 e 05/12/2021, bem como, a partir desse panorama, propôs ao CNJ aperfeiçoamentos regulatórios e de fiscalização. O Provimento CNJ 161/2024 é fruto desse estudo apresentado pelo COAF. 

Verificou-se que, no período analisado, o segmento CNJ – Notários e Registradores apresentou uma média mensal superior a 120.000 (cento e vinte mil), representando o segundo segmento em quantidade de comunicações enviadas (ficando atrás somente das atividades financeiras).  

Todavia, a grande quantidade não representou qualidade nas comunicações.  O estudo apontou que, nas comunicações recebidas, predominam (I) deficiências como a ausência de detalhamento da suspeição identificada, (II falhas na identificação dos envolvidos e (III) incompreensão do comando regulamentar, limitando sua utilidade para fins de inteligência financeira, sendo que apenas 1% (um por cento) das comunicações recebidas do segmento CNJ – Notários e Registradores fez parte de análises em Relatórios de Inteligência Financeira – RIF.  

As considerações exaradas pelo COAF indicam a necessidade de: (I) aprimoramento terminológico, a fim de que – por exemplo – os comunicantes não confundam “pagamento em moeda corrente” com “pagamento em espécie”; (II) aumento no valor base para a comunicação de operação em espécie (que era de R$ 30.000,00 e passou a ser de R$ 100.000,00); (III) eliminação de algumas hipóteses de enquadramento em comunicação automática, transformando-as em enquadramento em comunicação suspeita; (IV) aperfeiçoamento do formulário do SISCOAF para incluir campos estruturados para a informação mais precisa de valores dos imóveis e das transações; e (V) capacitação dos comunicantes. 

Especificamente quanto à capacitação de notários e registradores, destaca-se o fato de que o campo de “informações adicionais” é destinado para o detalhamento e explicação da suspeição encontrada ou para a determinação do critério objetivo no caso de COA – Comunicação de Operação Automática e COS – Comunicação de Operação Suspeita. A reprodução completa da operação registrada ou do ato notarial em nada auxilia na análise de inteligência financeira. Na comunicação é essencial que sejam explicados e detalhados os sinais de alerta que particularizam a necessidade de comunicação da operação específica.   

As expectativas em relação aos resultados dessa atualização normativa são positivas, uma vez que as sugestões do COAF foram devidamente atendidas, aprimorando-se as regras que regulam a atuação de notários e registradores no sistema de PLD-FTP. A entrada em vigor do Provimento CNJ 161/2024 dar-se-á em 02 de maio de 2024 e a capacitação das respectivas equipes está a pleno vapor. 

Confira a parte 2 da entrevista e entenda os impactos do Provimento 161/2024, bem como os resultados da 4ª Rodada de Avaliação Mútua do Brasil pelo GAFI e as expectativas futuras para o setor. Clique aqui

Conheça o entrevistado 

Hercules Alexandre da Costa Benício 

Doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.