13/06/2023 Atualizado em : 27/11/2023

Mulheres na PLD: entrevista com Renata Gil

13/06/2023 Atualizado em : 27/11/2023

Dando seguimento à série de entrevistas sobre mulheres na PLD, conversamos, desta vez, com a juíza Renata Gil, primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros. A juíza ficou conhecida por sua atuação no combate à desigualdade de gênero e violência contra mulher, atuando em campanhas como a “Sinal Vermelho” e o Instituto Nós por Elas. Percorreu, ainda, notável trajetória em PLD: foi responsável pela avaliação do Chile no gafilat em 2010, e, também, por idealizar o funcionamento da CAC, central especializada em crime organizado no TJ do Rio de Janeiro.

1.A senhora possui atuação notável na promoção de paridade de gênero dentro e fora do judiciário. Pessoalmente, quais obstáculos precisou enfrentar enquanto mulher ocupante de cargo de liderança e profissional de PLD, área notavelmente masculina?

Quando iniciei minha carreira na área de prevenção à lavagem de dinheiro, de fato, pouquíssimas mulheres trabalhavam na estratégia nacional e nos processos de grande repercussão do Rio de Janeiro. Penso, assim, que as dificuldades que enfrentei foram as mesmas que qualquer mulher costuma enfrentar em um ambiente predominantemente masculino: a interrupção de fala em razão do gênero era frequente; nos debates, todas as questões eram direcionadas ao público masculino; e os círculos profissionais que se formavam eram, em regra, também exclusivamente masculinos. Esta não é, todavia, uma dinâmica exclusiva da PLD – em outras carreiras, observamos este mesmo comportamento, e, como juíza e presidente da associação, os obstáculos que enfrentei não foram diferentes. Mas penso que, aos poucos, as mulheres romperam com este padrão, demonstrando conhecimento técnico na matéria e ocupando, de modo assertivo, os espaços institucionais.

2.Como primeira juíza estadual a integrar a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), foi possível perceber, desde então, algum progresso quanto à participação feminina na área de PLD?

Em alguma medida, foram observados progressos, uma vez que temos observado um aumento no número de profissionais mulheres nas áreas jurídicas, aumentando, em consequência, a atuação feminina em órgãos como a ENCCLA, no qual atuam, predominantemente, profissionais do direito. Em órgãos técnicos, todavia, como CVM, COAF, o número de mulheres é bastante reduzido. Portanto, a meu ver, se é verdade que a participação tem aumentado, estes progressos são, ainda, bastante tímidos. Isso porque, na realidade, não há o incentivo institucional para que esta participação aumente, incentivo este que deve ser dado, primeiramente, pelo combate à violência, seja ela praticada no local de trabalho ou fora dele, e, em segundo lugar, pela promoção de igualdade de gênero propriamente dita. Penso que, quando a mulher conseguir efetivamente estes incentivos, a participação em órgãos da PLD aumentará como reflexo e consequência natural destas medidas.

Leia também: Promovendo a Integridade e a Cooperação: o papel do DRCI e da ENCCLA na Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo

3.A senhora também foi responsável pela criação da Central de Assessoramento Criminal (CAC) no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cujo escopo é atuar em ações de crimes de alta complexidade, e, em especial, no crime organizado. De que modo a CAC poderia auxiliar na punição de crimes desta natureza e qual seria o seu papel no combate à corrupção e lavagem de dinheiro?

A CAC foi criada, porque havia, na Baixada Fluminense, funcionários de um cartório que eram parentes de membros de organizações criminosas. Como resultado, dar seguimento a processos relacionados a estas organizações poderia significar verdadeiro risco à vida. Não à toa, fui, por minha atuação em processos contra o crime organizado, ameaçada de morte pelo tráfico do Rio de Janeiro. De modo que, em uma conversa com a juíza que trabalhava nesse cartório, percebemos a importância de que se criasse um ambiente cartorário no qual advogados e familiares dos envolvidos não conseguissem acesso à identidade do autor e dos funcionários atuantes no processo. Surgiu, deste modo, a ideia de um cartório sem rosto, todo digitalizado. Se atualmente os processos são todos, ou quase todos, digitais na justiça brasileira, na época, não era possível afirmar o mesmo. E o formato digital viabilizou, não somente uma valiosa proteção à vida daqueles que atuavam no sistema de justiça, identificando-os somente por códigos, como proporcionou, também, maior celeridade ao processo, em consonância com o princípio do devido processo legal. Gradativamente, essa central alcançou grande relevância, e foi anexada à Vara Especializada em Organização Criminosa do TJ do Rio de Janeiro, contando, atualmente, com juízes identificados, mas atuantes em equipes, e funcionários identificados somente por códigos. 

4.Sobre a sua atuação como avaliadora do Chile pelo gafilat em 2010, a senhora relatou o seguinte: “no Chile eu encontrei, por exemplo, instituições que são muito severas, são muito organizadas em termos de combate à corrupção, mas não têm a eficiência e a efetividade que temos aqui, no Brasil, exatamente porque nossas instituições trabalham com estabilidade, porque nossas instituições, como o Judiciário e o Ministério Público, trabalham com independência, independência essa que é constitucional”. De que modo a independência do Judiciário favorece o combate à corrupção e lavagem de dinheiro?

A independência é um princípio bastante caro ao exercício da magistratura. No caso brasileiro especificamente, a independência dos magistrados é assegurada pela Constituição, tripartida nos princípios da inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade. Inamovibilidade, que veta a transferência compulsória do juiz de uma comarca a outra; irredutibilidade de vencimentos, que proíbe a redução salarial para o cargo de magistrado; e, por fim, a vitaliciedade, sendo, portanto, o cargo de magistrado permanente, e revogável somente com sentença transitada em julgado que assim o determine. Como mencionei, estes princípios visam assegurar a independência do juiz, o que significa garantir que o magistrado não sofra retaliações ou seja constrangido a julgar de uma ou outra maneira. Esta garantia é especialmente importante nos processos referentes ao crime organizado, no qual interferências políticas e financeiras acabam, não raro, por constranger a atuação do sistema de justiça. Penso que o ideal seria, inclusive, que todos os envolvidos no processo desfrutassem da mesma proteção. Não é incomum, por exemplo, que delegados de polícias sejam transferidos de uma delegacia a outra, para que sejam interrompidas as suas investigações acerca de determinada organização criminosa. 

É evidente, deste modo, que a influência política acaba prejudicando o combate à corrupção e lavagem de dinheiro. E, não à toa, temos observado diversos projetos no Parlamento, visando, justamente, modificar a independência judicial, e, consequentemente, enfraquecer o poder judiciário, que é tão forte no Brasil. Eu tenho dito que a justiça brasileira é um verdadeiro modelo para outros países: nossa magistratura não depende de ingerências políticas e os juízes brasileiros são avaliados em prova de concurso e títulos bastante apurados. Desta forma, conseguimos oferecer à sociedade o que ela espera de nós, que é um julgamento justo e imparcial, também, mas não somente, àqueles que participam do crime organizado.

5.Em sua dissertação, a senhora afirmou existir uma relação simbiótica entre lavagem de dinheiro e corrupção governamental. De que modo a lavagem de dinheiro pode prejudicar políticas públicas e impactar negativamente as esferas sociais, econômicas e ambientais?

O impacto é direto – observamos atualmente um processo empobrecimento das nações, que precisam recorrer ao aumento de impostos para arrecadar os fundos destinados aos setores sociais. A corrupção e lavagem de dinheiro acabam, portanto, desviando recursos públicos que já seriam, por si só, insuficientes para suportar as questões primárias de um ser humano, como educação, saúde, investimentos em alimentação, etc. Portanto, a interferência é direta e, infelizmente, no Brasil, observamos a atuação de organizações criminosas em secretarias de saúde, desviando equipamentos necessários, por exemplo, ao combate do COVID, além de medicamentos que seriam oferecidos gratuitamente aos necessitados. Estamos falando de esquemas financeiros que atingem, justamente, a camada da população que mais necessita da atenção social do país. Relembro que são 33 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil, sendo, assim, essencial que a preservação dos recursos públicos seja deslocada para atenção primária em nossa sociedade.

6.Por fim, gostaria de fazer uma pergunta mais pessoal: como mãe de dois adolescentes, que conselho poderia ser dado a mulheres que desejam conciliar carreira profissional e maternidade?

O meu conselho é o de que sigam em frente e de que não desistam! Para nós, mulheres, conciliar carreira e vida pessoal é mais difícil – a acumulação de funções nos sobrecarrega física, emocional e mentalmente. Estou convencida, no entanto, de que as mulheres possuem esta habilidade, e precisamos, quando necessário, nos amparar nas pessoas que nos apoiam, para que, assim, seja possível executar aquilo que sonhamos para a nossa vida. 

Reforço que podemos escolher o nosso destino, o nosso caminho, sem que isso importe em prejuízo à família, bastando, para tanto, coragem, e um pouco de criatividade para encaixar todas as demandas de um mundo acelerado e cheio de informações. 

Referências:

Líder de 14 mil juízes: quem é a primeira mulher a presidir a associação nacional de magistrados

Manual de Instalação e Funcionamento de Central de Assessoramento Criminal – TJ-RJ.

Câmara dos Deputados, Ata da Sessão nº 62208. 

Tendências Contemporâneas na Criminalização da Lavagem de Dinheiro frente ao Combate à Corrupção no Brasil: a Autolavagem em Foco.