30/09/2022 atualizado em : 30/09/2022

Mulheres na PLD: Entrevista com Anamara Osório Silva (MPF)

30/09/2022 atualizado em : 30/09/2022

Conversa sobre as especificidades femininas no mundo profissional e sobre as medidas contra o crime cibernético (cybercrime) e financiamento do terrorismo.

Nesta entrevista com Anamara Osório Silva, a discussão sobre as mulheres no mercado de trabalho tem lugar central, em especial a difícil conciliação de suas multifunções, os desafios para se conquistar respeito profissional, as especificidades do ambiente jurídico e a relação nem sempre apoiadora entre pessoas do mesmo gênero. Além disso, a entrevista nos atualiza em relação ao combate ao crime cibernético no Brasil e chama atenção para a importância do tema da prevenção      contra o financiamento do terrorismo. Anamara Osório é Procuradora Regional da República em São Paulo e atualmente exerce o cargo de Secretária de Cooperação Internacional Adjunta na Procuradoria-Geral da República. Doutoranda e mestre em Direito Internacional pela USP, entre 2011 e 2015 foi Procuradora-Chefe do Ministério Público Federal no Estado de São Paulo.


Mãe, esposa, acadêmica, escritora, uma carreira premiada e com áreas de atuação diversificadas como procuradora. Quais foram os principais desafios nesse percurso?

Encontrar tempo para fazer tudo sem me descuidar do que é mais importante para mim: a minha família, o meu filho. Equilibrar as tarefas, poder simultaneamente se dedicar aos estudos, à família, ao trabalho, é um desafio para qualquer um. Sempre me vi como uma pessoa determinada, mas o meu foco vem muito do prazer de fazer o meu trabalho, de poder contribuir, de tentar fazer a diferença (nem que seja um pouco) e de trazer uma equipe comigo. Acho que os eventuais resultados foram muito mais fruto da minha boa vontade, do meu desejo genuíno de ajudar e dar o meu melhor do que de um prévio e meticuloso planejamento de vida profissional. Gosto de arriscar e atuar em algo novo, assim o fiz na área da lavagem de dinheiro. É prazeroso para mim não me dar por satisfeita e ir atrás de mudanças.

Ter pessoas que pensam como você ao seu lado também é fundamental. No meu caso, tive a sorte de encontrar um parceiro de vida valoroso. Não que ter um relacionamento seja necessário num contexto de conquistas profissionais, mas ainda existem por aí (infelizmente) muitos relacionamentos egoístas e machistas que aos poucos retiram da gente, às vezes sutilmente, o nosso valor e a nossa crença de que podemos fazer mais. Creio, também, que as pessoas em geral estão se dando conta que não existem mais atividades só para mulheres. Atividades domésticas como fazer supermercado ou cuidar de filhos competem ao casal. Essa visão, sem dúvida, ajuda muitas mulheres a seguirem com seus objetivos profissionais.


O
crime cibernético (cybercrime) é uma das suas especialidades. Como você avalia a legislação e os mecanismos de combate a esse gênero de crime no Brasil hoje?

Em 16 de dezembro de 2021, foi promulgado o Decreto-Legislativo n. 37/2021 que aprovou a Convenção sobre o Crime Cibernético, celebrada em Budapeste, em 23 de novembro de 2001. No Ministério Público Federal, as procuradoras e procuradores especialistas em cybercrime trabalharam durante anos para fazer compreender que a adesão à Convenção era necessária ao Brasil.

A legislação brasileira possui os principais tipos penais que se adequam à Convenção, como a invasão de dispositivos informáticos, o crime de pedofilia na internet, a fraude por meios eletrônicos e outros. A Convenção vai incrementar, sem dúvida, a cooperação jurídica internacional, somando-se aos demais tratados e acordos bilaterais. Ainda aguardamos, neste momento, o depósito do instrumento de adesão junto ao Secretariado do Conselho da Europa. A par disso, a Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério Público Federal, onde trabalho hoje em dia, em conjunto com as procuradoras do grupo de combate aos crimes cibernéticos, tem participado das reuniões de trabalho da delegação brasileira – conduzida pelo Ministério das Relações Exteriores – sobre uma nova Convenção da ONU em crimes cibernéticos. Quem sabe esse texto em discussão venha a se tornar mais uma convenção a reforçar o arcabouço jurídico.


Você fez uma especialização na Universidade de Salamanca sobre antiterrorismo, algo que, no imaginário brasileiro, parece estrangeiro, não nos diz
      respeito. No que a população precisa se atualizar sobre o entendimento desse tema?

Talvez no tema do financiamento ao terrorismo. O brasileiro é receptivo. Tenho a impressão de que, em geral, no Brasil, socializa-se muito rapidamente com pessoas de alta renda sem sequer procurar saber de onde vem a fonte de sua vida de riqueza, algo que em outras culturas nacionais não ocorre. Sabemos também que o Brasil é um país alvo da prática de lavagem de dinheiro; agentes criminosos adquirem patrimônio no Brasil e integram dinheiro ilícito na economia brasileira. Se somarmos esses dois fatores temos um ambiente propício para o crime, que pode ser o de financiamento ao terrorismo. Por isso, precisamos reforçar nossas autoridades regulatórias, reforçar o papel e o funcionamento do COAF e das autoridades de persecução penal, Ministério Público e Polícia Federal.


Infelizmente ainda se veem notícias de práticas machistas em nosso sistema judiciário (em sentido amplo). Dito isso, como caracterizaria o ambiente da PLD em específico para as profissionais mulheres?

Acho que já foi mais complicado. Em 2004, quando comecei nesta área, existia um predomínio masculino, seja na advocacia, na área pública, na magistratura etc. Apesar disso, naquela época estávamos todos aprendendo os novos meandros da lavagem de dinheiro. O que eu percebo fortemente, no entanto, é que nesta área a profissional mulher que luta contra o crime de lavagem de dinheiro, contra o crime de colarinho branco e a corrupção, precisa ser mais forte ainda, pois pode virar alvo de maior intimidação, por ser equivocadamente vista como mais fraca e suscetível. É preciso que o sistema, as instituições as apoiem, e que sabendo disso não deem espaço às intimidações ou às tentativas de desqualificação de suas funções. As mulheres, por sua vez, não se podem deixar abalar por intimidações de gênero, porque elas existem.


Em 2021 você teve uma experiência especialmente rica para esta série quando participou do curso
Leadership for Women in Law Enforcement na ILEA dos Estados Unidos. Poderia partilhar um pouco desse aprendizado?

Essa experiência foi rica porque pude ouvir o relato de muitas mulheres, principalmente policiais que, por exemplo, diziam que não tinham o respeito de seus colegas homens quando estavam em cargos de chefia, dizendo que demoravam muito mais a ter esse respeito ou conquistar uma liderança do que se fossem homens no mesmo cargo. Ouvi maravilhada as narrativas, com muito orgulho daquelas mulheres fortes.

Eu também já exerci cargo de chefia, como Procuradora-Chefe do Estado (2011-2015), não me senti da mesma forma, não sei se por conta da estrutura da instituição do Ministério Público, chegando mesmo a ter o apoio de colegas homens, que se tornaram meus amigos ao longo do percurso. Todavia, lembro que me ressentia às vezes de não ter mais tempo de conversar com meus colegas. Estar numa posição de chefia entre iguais procuradores é um desafio, e por conta das várias atividades que temos que fazer, não só no trabalho, mas cuidar de filho (na época o meu era recém-nascido), casa, estudos etc., às vezes eu sentia que não tinha o tempo certo para resolver uma questão que facilmente seria resolvida em um cafezinho entre o expediente, e me pegava pensando que as conversas entre colegas homens muitas vezes se resolviam exatamente assim, de uma forma trivial.

Além disso, por incrível que pareça, os conflitos pontuais mais desafiadores que tive foram com mulheres. É aquilo que sabemos há longa data, as próprias mulheres muitas vezes não se ajudam, competem, diminuem umas às outras quando veem uma conquista e sem querer se coadunam com adjetivações como “ambiciosa”, “autoritária”, “boazinha” frequentemente ligados a mulheres a quem caberia, simplesmente, “decisiva”, “assertiva”, ou “que sabe ouvir”, por exemplo. Pode ser que isso esteja mudando, que nós mulheres estejamos compreendendo que temos que nos apoiar e nos incentivar, entender que a conquista de uma é a conquista de muitas.


Para evitar ou driblar possíveis preconceitos na vida profissional, quais características as mulheres precisam buscar cultivar?

Acho muito difícil para uma mulher tocar no peito e dizer: nunca na minha vida profissional senti os efeitos do preconceito. Muitas vezes minimizamos para não nos abalarmos. De minha parte, eu sempre me trabalhei internamente de uma maneira muito firme para nunca me deixar vencer por eventual preconceito.

Fazendo um retrospecto, creio que já vivenciamos, por exemplo, em várias ocasiões, eventos jurídicos formados por mesas exclusivas de painelistas homens quando tínhamos excelentes profissionais mulheres no ramo. Coletâneas de livros sem a presença de um artigo de autoria feminina. A impressão que dá é de que a mulher precisa aguardar um tempo maior para provar que é competente. Às vezes o que é dito por uma mulher é repetido por um homem, mas com ele ganha mais força.

Felizmente, acho que isso também está mudando. As mulheres podem ser o que quiserem, dedicarem-se a várias iniciativas, arriscarem-se, serem determinadas, decididas, e devem saber confiar em quem seja exemplo de boa convivência e competência.


Referências

Currículo Lattes de Anamara Osorio Silva

Linkedin de Anamara Osório Silva

Dupla Incriminação no Direito Internacional Contemporâneo: Análise sob a Perspectiva do Processo de Extradição

Jurisdição Internacional e Internet

Leadership for Women in Law Enforcement

Retrato: Anamara Osório, a chefe da Lava Jato em São Paulo

No pior momento da Lava Jato, força-tarefa em São Paulo tenta “renovar impulso”

 



Autor : 
Da Redação