18/06/2018 atualizado em : 18/06/2018

Doleiros criaram sistema à sombra do Coaf e do Banco Central, diz procurador

18/06/2018 atualizado em : 18/06/2018

A rede de doleiros investigada na operação “Câmbio, Desligo” utilizava um sistema paralelo, com a criação de um banco de compensações, que ficava à sombra dos órgãos de controle, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e o Banco Central (BC).

 

Quem explica é o procurador da República Almir Sanches, membro da força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro. Em entrevista ao JOTA, ele afirmou que os órgãos de controle do sistema financeiro nacional devem ser aperfeiçoados para identificar formas cada vez mais complexas de movimentar o dinheiro no mercado paralelo de câmbio.

 

“Essa maneira de os doleiros aturarem, como um banco paralelo, nas sombras, vai fazer com que pensemos em nossa fiscalização. Principalmente o BC e o Coaf, que terão de criar novas maneiras para prevenir”, falou Sanches.

 

Na última semana, os procuradores do MPF no RJ denunciaram 61 doleiros e o ex-governador Sergio Cabral na operação “Câmbio, Desligo”. A organização é acusada de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e corrupção contra o sistema financeiro nacional.

 

O procurador explica que os doleiros tinham uma espécie de banco paralelo, que funcionava como uma casa de compensação. “Um sistema de crédito e débito. Tal pessoa entregou 100 mil dólares lá fora? Ela tem 100 mil dólares de crédito”, diz Sanches. Segundo ele, “havia até uma linha de crédito pelo tipo de doleiro, pois eles sabiam o cliente que estava devendo muito e assim iam diminuindo o crédito dele”.

 

Confira os principais trechos da entrevista concedida ao JOTA.

 

Qual o tamanho desta operação, tendo em vista que somente a denúncia tem mais de 800 páginas?

 

Nos preocupamos em mostrar a atuação individual de cada membro nas atividades criminosas. Pelo número de denunciados e fatos criminosos imputados, e pela complexidade, não conseguimos fazer uma denúncia menor. Mas a consideramos robusta, pois são 800 páginas só de fatos, sem devaneios. Fizemos um corte para que seja viável a instrução processual, pois esses fatos são apenas uma fração.

 

Há investigações decorrentes desses fatos descobertos?

 

As investigações continuam e têm o objetivo de identificar os clientes dos doleiros, que podem ir desde empresários, que visam sonegar impostos e lavar dinheiro, a outras investigações criminosas.

 

Há algum elo entre Eike Batista e o doleiro Dario Messer?

 

Os nomes sobre os quais há fortes suspeitas eu não posso falar neste momento. Mas podemos dizer que tem de tudo, desde empresários, profissionais liberais, médicos, advogados. Mas aí as investigações vão mostrar. Estamos desenrolando esse novelo.

Como funcionava o esquema de envio chamado “dólar-cabo”?

 

Esse sistema é uma prática ilícita que existe há muito tempo, desde quando a moeda era mais fraca, dependente do dólar. É usado como um sistema paralelo que não deixa rastro para atividades ilícitas. Houve uma sofisticação, um salto muito grande com essa rede.

Anteriormente, quando alguém precisava remeter dinheiro para o exterior, a pessoa tinha que acionar o doleiro de confiança, que tinha que ter uma ponta no exterior já com dólares e uma capacidade de custódia e distribuição de um volume muito grande de reais. A pessoa que queria remeter para o exterior entregava reais ao doleiro no Brasil que, por sua vez, tinha uma conta no exterior, mandava abrir uma empresa offshore lá fora e mandava o dinheiro pra lá.

 

Com essa rede, vemos um salto de ciência na atividade criminosa, pois o que o Dario Messer fazia por meio de seus funcionários e sócios minoritários era casar operações de diferentes doleiros. Como era uma rede grande, quase todo dia tinha alguém querendo mandar dólar para fora e trazer para dentro.

 

Sem a necessidade de ter esse dinheiro todo lá fora, eles criavam um banco paralelo, uma casa de compensação totalmente às sombras e paralela ao sistema oficial. Um sistema de crédito e débito. Tal pessoa entregou 100 mil dólares lá fora? Ela tem 100 mil dólares de crédito. O contrário também acontecia, quando havia débitos. Tinha até linha de crédito pelo tipo de doleiro, pois eles sabiam quem estava devendo muito, e assim iam diminuindo o crédito dele.

 

Os órgãos administrativos, como Coaf e Banco Central, falharam nessa fiscalização?

 

As informações do Coaf foram fundamentais, pois quando desconfiamos de alguém, os relatórios de inteligência confirmam, ou não, nossas suspeitas.

 

Mas os sistemas do Coaf e do Banco Central têm que estar em constante aperfeiçoamento. Vemos preocupação constante de estarem respondendo às demandas das investigações. Percebemos que havia corrupção por pagamento de boleto a terceiros. É natural esse aperfeiçoamento. Mas vemos que existia uma preocupação muito grande com a conta paralela, tudo era pensado para deixar fora do radar.

 

De que maneira?

 

Dinheiro espécie. Até hoje essa é a forma mais popular de se cometer ilícitos porque não deixa rastro. Você entrega a mala e ninguém nunca vai saber se saiu de uma mão para a outra. Mesmo o radar do Coaf. O [Sergio] Cabral participava nas duas pontas da negociação. Em um determinado momento, as empreiteiras tinham que gerar reais em caixa dois para pagar propina para ele.

 

Sempre preferiam pagar fora do país?

 

Elas têm que ficar fora do sistema de contabilidade. E não podem transferir. E aí a maneira de lavar é essa: entregavam em espécie no Brasil para o Sergio Cabral e, para gerar em espécie, eles já tinham esse montante lá fora. Assim, transferem para alguém que está dando a ele em reais.

 

O contrário também, pois às vezes ele entregava o dinheiro para o doleiro e recebia em espécie lá fora. No momento em que tudo fica paralelo, na sombra, fica difícil para as instituições terem uma prevenção mais forte. Tem muitas coisas que vão se aperfeiçoando, esperamos que as investigações contribuam, mas na medida em que a repressão ao crime vai se sofisticando, o crime também vai.

Então estamos buscando sempre novas formas. Essa maneira de os doleiros aturarem, como um banco paralelo, nas sombras, vai fazer com que pensemos em nossa fiscalização. Principalmente o BC e o Coaf, que terão de criar novas maneiras para prevenir. É um processo que ao longo do tempo vai se aperfeiçoando.

 

Está havendo cooperação internacional?

 

Estamos buscando. Uma das coisas da operação é que temos provas das contas das quais saíam o dinheiro e para quais contas o dinheiro ia. Há uma dificuldade por se tratar de mais de 50 países, e sabemos que a cooperação ainda tem um trâmite a seu tempo. Então, às vezes não é na velocidade que gostaríamos, mas a maioria está se mostrando proativa. Não temos dúvida.

 

Com quais países estão sendo feitas essas cooperações?

 

Procuramos pegar os que tinham mais operações e contas maiores, com mais movimentação de dinheiro, como Suíça, Estados Unidos, China, Panamá, Uruguai e Paraguai.

 

No Brasil, esse dinheiro circulava por Rio e São Paulo?

 

Era mais ou menos proporcional à praça. Rio de Janeiro, pelo fato do Sergio Cabral, e São Paulo foram grandes. Brasília também e algumas outras, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

 

Há indícios de que essa organização seguia em prática mesmo com Sergio Cabral preso?

 

Sim. Uma parte importante do dinheiro movimentado era relativo à organização do Cabral, mas muitos outros crimes eram movimentados por essa operação.

 

No rol de testemunhas há 22 nomes, entre eles o operador Lucio Funaro. Todos ajudaram o MPF nas investigações?

Boa parte das testemunhas são colaboradores, pois é um esquema sofisticado e complexo. Isso mostra a importância da colaboração. Como é muito difícil montar, é importante ter alguém de dentro explicando. Esse tanto de colaboração mostra a conexão e interconexão entre eles. Uma pessoa participando do esquema da Odebrecht também gerava reais para entregar ao Sergio Cabral.

Como se dava isso?

A Odebrecht usava essa organização para gerar reais. Vemos como os crimes acabam se conectando, principalmente na lavagem de dinheiro. Um ilícito subsidiava o produto do outro.

Outro ponto importante de ver é que muitos doleiros presos já haviam sido em algum momento identificados como doleiros em outras operações. Foram pegos, muitas vezes denunciados, e voltaram a fazer o mesmo tipo de atividade ilícita. Esse é mais um argumento para mostrar a importância da [prisão] preventiva.

Quantos estão presos preventivamente?

 

Por enquanto só foram soltos quatro doleiros. Mas nosso receio é a maneira extensiva que tem se dado HCs.

Nos últimos 20 dias, houve 19 HCs, todos concedidos pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Essas solturas podem prejudicar a operação?

 

Essas decisões se baseiam em dois argumentos que consideramos frágeis. O primeiro é a falta de contemporaneidade, mas vemos que os principais funcionários do Dario Messer foram presos em 3 de março de 2017, e no momento da prisão a organização funcionava. É um fato difícil de negar. Não é por alguns dos crimes imputados serem de 2011 que não quer dizer que não há outros. O esquema funcionava de maneira estável ao longo de décadas.

 

E o segundo argumento é a questão de não haver grave ameaça: mas aí existem dois problemas. O que prejudica mais a ordem pública? Um esbarrão na rua com alguém batendo sua carteira ou um caso de corrupção que desvia num único ato milhões, retirando dinheiro da saúde, educação, e podendo gerar dezenas de mortes? Não tratar isso como grave ameaça e violência é uma forma de manter o que a Lava Jato tenta acabar, que são dois tipos de Direito Penal, para o pobre e para o rico. Só pode ser preso preventivamente quem pratica crime de sangue? Não acreditamos e a lei não pede isso.

 

Um possível habeas corpus para esses doleiros pode prejudicar o futuro da operação?

 

Não pensamos no futuro da operação e nem pedimos a prisão pensando nisso, mas sim pelo fato de a lei permitir, pois há um risco à ordem pública e à instrução processual. Pode ser que a organização criminosa esteja operando e lavando dinheiro de diversos crimes. A instrução está em risco pois as contas podem ser encerradas, o dinheiro sacado. Vemos um absurdo de serem soltas pessoas foragidas. A pessoa não está nem se entregando e ainda assim ela é solta? Achamos que não é o que o ordenamento prevê.

 

Isso fica mais perigoso numa véspera de eleição?

 

Um dos efeitos colaterais importantes que acreditamos ter alcançado é o fato de ter desmontado ou mitigado a operação [de lavagem de dinheiro]. Em véspera de eleição, a movimentação crescia muito no sistema paralelo. Alguns doleiros específicos tinham esse aspecto. Pode ser uma mera coincidência, mas é difícil. Crescia o volume justamente em meses anteriores à eleição. Ainda mais numa eleição em que empresas não podem fazer doações financeiras, acreditamos que desmontar a organização é relevante num ano em que o mercado paralelo seria bastante alimentado por doações e propina.