Quando falamos em investigação e recuperação de ativos, é essencial termos em mente que a sua realização só ocorre devido à existência de três instrumentos de cooperação internacional: Tratados de Assistência Jurídica Mútua em Matéria Penal (MLAT na sigla em inglês); Memorandos de Entendimento (MOU na sigla em inglês) e a Plataforma Pontos Focais de Recuperação de Ativos STAR-INTERPOL. Cada um desempenha uma função diferente dentro desse processo. 1. O Tratado de Assistência Jurídica Mútua em Matéria Penal O Tratado de Assistência Jurídica Mútua em Matéria Penal refere-se ao acordo realizado entre países, cujo objetivo é desburocratizar os atos judiciais, elegendo-se autoridades centrais nos países signatários para dar cumprimento ao pedido de assistência, inclusive para estabelecer as regras para uma possível recuperação de ativos, sem a intervenção da via diplomática. A base de cada tratado é semelhante, todavia, em virtude das diferenças no ordenamento jurídico de cada país, existem algumas especificidades. No caso do Brasil, a partir de 2004, este assunto passou a ser concentrado no Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, da Secretaria Nacional de Justiça (DRCI/SNJ). Essa centralização deu maior agilidade aos processos, uma que o órgão foi incumbido de exercer a atividade de Autoridade Central nos acordos e tratados de cooperação jurídica internacional. Antes da criação do DRCI, os processos de investigações voltados a subsidiar ações de congelamento, bloqueio e confisco de bens, com posterior recuperação de ativos, demoravam muito. Em alguns casos, era necessário que as autoridades policiais e/ou membros do Ministério Público fossem até o outro país, correndo o risco do dinheiro ser movimentado e se perder o paper trail. Isso aconteceu no famoso caso Banestado, na Operação Faroleiro (2004), em que policiais brasileiros realizaram apreensões e investigações em diversos estados do Brasil, além de Washington e Nova Iorque, nos EUA. Além disso, o estabelecimento do DRCI levou a um aumento no número de MLATs com diversos países, inclusive aqueles considerados paraísos fiscais. Assim, o Tratado de Assistência Jurídica Mútua é um instrumento jurídico que permite a produção de provas, que podem ser usadas pelo juiz para requerer a outro país a recuperação de ativos que sejam fruto de atividades ilícitas relacionadas à lavagem de dinheiro. Há que se destacar que a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), conhecida como Convenção de Mérida, prevê, no âmbito do Direito Internacional, a recuperação total dos ativos relacionados ao crime de corrupção e a adoção de mecanismos de prevenção para fortalecer os Estados para o desenvolvimento de uma cultura anticorrupção. O artigo 51 da Convenção de Mérida consagra a recuperação de ativos como princípio fundamental do texto convencional. Mas, então, qual a função dos outros dois instrumentos? Como dito, eles não se destinam a produzir provas, mas ambos são importantes por produzirem dados de inteligência, que auxiliam nas investigações. 2. Memorandos de Entendimento Os Memorandos de Entendimento (MOUs) são instrumentos utilizados por Unidades de Inteligência Financeira (UIF), como o caso do Brasil com o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) para o compartilhamento de informações no contexto das investigações voltadas ao Combate e Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento ao Terrorismo. Este documento, em regra, é redigido com base no modelo predisposto pelo Egmont Group, organismo que oferece um fórum para que as UIFs ao redor do mundo possam aprimorar sua cooperação. Os MOUs seguem alguns princípios, dentre os quais se destacam: Compartilhamento livre com base na reciprocidade. As informações devem ser compartilhadas o mais rápido possível, sem pré-requisitos excessivos. A comunicação entre as UIFs deve ocorrer de forma direta, sem a necessidade de recorrer a intermediários. A UIF que disponibilizar a informação não deve negar autorização quanto a sua divulgação, salvo se tal autorização estiver além do escopo de suas disposições legais de combate e prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo. O compartilhamento de informações entre as Unidades de Inteligência Financeira do Grupo Egmont deve ser realizado de forma segura. Para tanto, é necessário usar o serviço Egmont Secure Web (ESW). 3. Plataforma Pontos Focais de Recuperação de Ativos A Plataforma Pontos Focais de Recuperação de Ativos StAR-INTERPOL tem como objetivo fornecer um meio seguro de assistência operacional nos processos investigativos de crimes. A rede StAR, lançada em 2009, numa parceria entre a INTERPOL, o Banco Mundial e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), consiste em uma base de dados que se encontra disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, para responder a pedidos urgentes e diretos de assistência quando a ausência imediata da ação possa causar danos sérios à investigação do rastreamento de dinheiro pelos agentes incumbidos de aplicar a lei. Assim, pode-se afirmar que esses instrumentos são fundamentais para que a investigação seja realizada e a repatriação efetuada. 4. Dificuldades na recuperação Mesmo com tantos avanços, como a criação do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) como Autoridade Central e o aumento de acordos e tratados de assistência jurídica mútua, o trabalho de cooperação jurídica internacional em matéria penal resultou, nos últimos 20 anos, no bloqueio de um montante de US$ 1,5 bilhão em outros países a pedido do Brasil. Desse valor, no entanto, somente US$ 282 milhões foram efetivamente repatriados, devido a barreiras na recuperação de ativos, relacionadas ao trânsito em julgado das ações aqui no Brasil, que geralmente não acontece antes do prazo definido entre os países para fins de congelamento e bloqueio de bens. Por outro lado, há que se levar em conta que os facilitadores da lavagem de dinheiro sabem com quais países o Brasil tem os referidos acordos e tratados de assistência jurídica mútua em matéria penal, assim assessoram seus “clientes” para que deposite os valores obtidos por meio ilícito em países não cooperantes, para que estes fiquem salvaguardados. Este cenário ocorre porque diversos países não são cooperantes, como os conhecidos paraísos fiscais. Esses países fazem uma opção política de implantar tributações favorecidas, oferecendo vantagens para atrair investidores estrangeiros, incentivando, por vezes, alguma área específica, além do total sigilo bancário. Assim, ao estimularem o investimento, esses países dificultam o combate à lavagem de dinheiro e, consequentemente, a recuperação de ativos. Desta forma, é possível observar o quão fundamental é a cooperação jurídica internacional para investigação e recuperação de ativos. Curadoria do IPLD Autor: Honazi Farias Delegado aposentado da Polícia Federal, consultor e professor nas áreas de Investigação Corporativa e Prevenção à Lavagem de Dinheiro dos Cursos de Pós-Graduação e MBA em Gestão de Riscos de Fraudes e Compliance. *Texto originalmente publicado como uma série no Blog do IPLD