14/07/2023

O Financiamento do Terrorismo e as Vulnerabilidades Organizacionais e Setoriais das Entidades Sem Fins Lucrativos

14/07/2023

O Gafi abriu um período de consultas públicas para modificar o texto da recomendação 8 e suas notas interpretativas (R.8/INR.8). As mudanças visam melhorar e mitigar possíveis efeitos negativos que a implementação das medidas de proteção das organizações sem fins lucrativos contra possíveis abusos do financiamento do terrorismo pelos países podem causar.

Segundo o GAFI, a recomendação 8 se aplica a “pessoas jurídicas ou arranjos ou organizações que primariamente se engajam no levantamento ou distribuição de fundos para causas tais como caridade, religião, cultura, educação, social ou fraternal ou para fazer outros tipos de ‘bons trabalhos’”. Já o abuso do financiamento do terrorismo diz respeito à “exploração por terroristas e organizações terroristas de entidades sem fins lucrativos para levantar ou mover fundos, prover apoio logístico, encorajar ou facilitar o recrutamento terrorista, ou apoiar de outra maneira, terroristas ou organizações terroristas e operações.”

A revisão se dá porque o GAFI reconhece que ao ter incluído no texto da nota interpretativa à recomendação 8 (para. 7(b)(iii)) exemplos de medidas que os países podem adotar para mitigar o risco de financiamento do terrorismo através do abuso de ONGs, alguns países entenderam que todos os exemplos enumerados eram medidas obrigatórias que as jurisdições deveriam implementar. Isso levou a um problema de excesso de aplicação de medidas preventivas nessas jurisdições que consequentemente pode potencialmente impactar negativamente a atividade das ONGs legítimas.

Desta forma, o GAFI está considerando se: 1) mantem os exemplos no corpo da nota interpretativa; 2) desloca esses exemplos para um pé de página de maneira integral; 3) desloca esses exemplos para um pé de página de maneira resumida, ou; 4) retira completamente os exemplos e os divulgam em um paper específico sobre melhoras práticas no assunto.

Além das revisões acima, a plenária do GAFI decidiu em paralelo rever e atualizar o seu documento sobre as melhores práticas no combate ao abuso das organizações sem fins lucrativos (FATF Best Practice Paper to Combat the Abuse of NPOs – BPP). Além do trabalho interno de revisão, o Gafi também abriu um período de consultas públicas sobre o assunto. Segundo o GAFI, os principais pontos a serem discutidos e revistos segundo o próprio GAFI são:

A mitigação do risco de FT em no nível individual de uma ONG (seção 3.2 e Anexo B do BPP);

• A implementação de instrumentos de boa governança no nível individual das ONGs para atender aos objetivos da R.8 (seção 3.4 e Anexo B do BPP);

• Iniciativas das instituições financeiras para garantir o acesso de ONGS legítimas a serviços financeiros, incluindo medidas de mitigação baseadas em risco (seção 4.2 e Anexo C do BPP);

• Iniciativas de ONGs e doadores para garantir o acesso das ONGs legítimas a serviços financeiros (seção 4.3 e Anexo C do BPP); e

• Exemplos de má aplicação da R.8, para identificar práticas evitáveis e para ajudar países, instituições financeiras e organizações sem fins lucrativos a implementarem corretamente a abordagem baseada em risco.

Adicionalmente, o documento em revisão aborda assuntos tais quais: como os Estados podem combater o abuso do financiamento do terrorismo em organizações sem fins lucrativos; como essas organizações podem se proteger desses abusos, e; como as instituições financeiras e as entidades sem fins lucrativos legítimas podem garantir o acesso aos serviços financeiros e evitar o de-risking.

As sugestões de mudanças e melhorias serão devidamente analisadas, discutidas e consideradas na plenária do GAFI em outubro de 2023. É importante ressaltar que desde fevereiro de 2021, o GAFI vem trabalhando para identificar, analisar e mitigar as consequências negativas não intencionais da adoção dos seus 40 pontos pelos países. A revisão da recomendação 8, da sua nota interpretativa e do Paper de Melhores Práticas, devem ser entendidos dentro desse esforço mais amplo.

Mas, por que dessa preocupação? Qual é o risco de exploração das ONGs por terroristas ou organizações terroristas? Como grupos terroristas exploram ONGs? Por que o setor é especialmente vulnerável ao financiamento do terrorismo?

 

O Financiamento do Terrorismo e a Exploração de ONGs

As organizações não-governamentais sem fins lucrativos (ONGs) e seus trabalhos beneficentes são tremendamente importantes na ajuda aos necessitados. Suas ações dedicadas desempenham um papel fundamental em salvar vidas e promover o desenvolvimento em todo o mundo. Infelizmente, o desvio de fundos e a exploração de instituições de caridade legítimas têm sido particularmente atraentes para grupos terroristas. As ONGs atuam proporcionando uma vasta gama de serviços e ações sociais diferentes que vão desde a promoção das artes e esportes até o fornecimento de educação e saúde. Dentro dessa vasta área de atuação, as organizações sem fins lucrativos que atuam globalmente prestando serviços são especialmente visadas por agentes que buscam financiar o terrorismo.

Isto se deve a várias razões. Em primeiro lugar, as organizações sem fins lucrativos têm um apelo humanitário e uma legitimidade nobre que facilitam o seu financiamento e captação de recursos por meio de doações anônimas. Muitas organizações sem fins lucrativos também têm alcance global atuando em vários países em todo o mundo. Como tal, as organizações sem fins lucrativos globais já têm em funcionamento tanto instrumentos que permitem construir uma rede de financiamento mundial quanto uma história e estrutura definida para justificar transações financeiras internacionais.

Outra característica particularmente atraente das organizações sem fins lucrativos globais é o fato de que, em muitos casos, essas organizações têm acesso à população, ao pessoal e ao material em campo nas áreas de conflito nas quais grupos extremistas que se utilizam da violência política atuam. As organizações sem fins lucrativos também costumam fazer uso intensivo de recursos em efetivo, costumam possuir práticas de gerenciamento interno precárias e operam sob requisitos legais e supervisão externa mais brandos do que empreendimentos comerciais em geral. Nesse sentido, o GAFI identificou as organizações não-governamentais sem fins lucrativos como um ponto de preocupação que merece atenção especial quando se trata da prevenção e combate ao financiamento do terrorismo. Isso porque as instituições de caridade têm quatro características inerentes que as tornam particularmente vulneráveis à exploração:

    • Suas redes logísticas ampliadas;
    • Seu uso de grandes forças de trabalho transitórias; 
    • Sua capacidade operacional; e
    • Sua cultura organizacional.

Essas características levam tanto a uma vulnerabilidade organizacional quanto a uma vulnerabilidade setorial. As vulnerabilidades organizacionais levam a que ONGs legítimas sejam exploradas por terroristas e grupos terroristas. As vulnerabilidades setoriais levam a que terroristas e grupos terroristas criem falsas ONGs para avançar seus objetivos de financiamento. logística ou recrutamento. Juntos, essas vulnerabilidades evidenciam quatro categorias amplas de métodos de FT usados no abuso e exploração das organizações sem fins lucrativos para fins de financiamento:

 

Financiamento do terrorismo diante das vulnerabilidades organizacionais das ONGs

As organizações não-governamentais sem fins lucrativos (ONGs) e seus trabalhos beneficentes são tremendamente importantes na ajuda aos necessitados. Suas ações dedicadas desempenham um papel fundamental em salvar vidas e promover o desenvolvimento em todo o mundo. Infelizmente, o desvio de fundos e a exploração de instituições de caridade legítimas têm sido particularmente atraentes para grupos terroristas. As ONGs atuam proporcionando uma vasta gama de serviços e ações sociais diferentes que vão desde a promoção das artes e esportes até o fornecimento de educação e saúde. Dentro dessa vasta área de atuação, as organizações sem fins lucrativos que atuam globalmente prestando serviços são especialmente visadas por agentes que buscam financiar o terrorismo.

  1. Desvio de fundos/ativos: O desvio de fundos acontece quando os recursos das organizações sem fins lucrativos são redirecionados para financiar o terrorismo. O desvio de fundos frequentemente ocorre através de alguém que se infiltra na instituição e realmente trabalha dentro da ONG. O abuso pode ocorrer em qualquer ponto dos processos financeiros da ONG, desde a arrecadação das contribuições ou vendas de produtos, passando pela transferência de bens/recursos até a entrega dos materiais aos necessitados. Durante a coleta, a técnica mais comum de desvio é se apropriar de parte do dinheiro levantada antes dele ser depositado na conta da ONG. Várias técnicas diferentes podem ser empregadas para desviar os fundos ou ativos nas outras fases. Há também casos em que atores externos se associam à ONG com a intenção de desviar seus fundos. Em alguns casos, por exemplo, um arrecadador externo de fundos intercepta parte dos recursos destinados a uma ONG. Em outros casos, o ator externo recebe os fundos ou ativos fornecidos pela ONG e os transfere para uma organização extremista. O desvio de fundos é o método mais comum de abuso das organizações sem fins lucrativos para financiar o terrorismo.
  2. Abuso dos programas das organizações sem fins lucrativos: Grupos terroristas podem manipular programas de caridade legítimos no ponto de entrega como meio de obter financiamento ou mesmo recrutar, avançar sua ideologia e/ou disseminar sua influência dentro de uma determinada população-alvo. Um exemplo é quando um grupo terrorista se infiltra em um programa de educação legítimo e o utiliza para difundir sua ideologia. Em termos de financiamento, um grupo terrorista pode usar programas de assistência de organizações sem fins lucrativos para fornecer apoio financeiro a comunidades locais e famílias de terroristas.

Financiamento do terrorismo diante das vulnerabilidades setoriais das ONGs

  1. Afiliação com grupos terroristas: Grupos terroristas às vezes se afiliam formal ou informalmente com uma ONG. Em alguns casos, um terrorista se infiltra na ONG para influenciar em suas decisões e conduzir o trabalho da ONG de uma maneira que beneficie a organização terrorista. Organizações terroristas também passaram a operar filiais regionais de ONGs para realizar atividades que aumentam suas capacidades operacionais em um território.
  2. Representação falsa e ONGs falsas: Os terroristas podem simular representarem uma ONG legítima bem conhecida ou criar uma ONG completamente falsa. Sob a guisa de uma causa legítima, estes grupos acham fácil coletar doações em dinheiro e transferi-las para sua causa. Em alguns casos, o grupo também pode se apropriar dos ativos e fundos de um programa de entrega legítimo.

Desta forma, as ONGs tem sido objeto de especial consideração na luta contra o financiamento do terrorismo. Mas é importante se ter em mente que as organizações sem fins lucrativos legítimas, tais como as ONGs, desempenham um importante trabalho humanitário que deve ser estimulado. Por um lado, sem dúvidas é preciso entender as vulnerabilidades organizacionais e setoriais dessas entidades para mitigar os possíveis abusos de FT que essas instituições podem vir a sofrer. Por outro lado, é essencial que as organizações sem fins lucrativos legítimas tenham acesso ao sistema financeiro para darem continuidade ao seu importante trabalho. A questão, portanto, é como encontrar esse ponto de equilíbrio adotando medidas que sejam condizentes com a análise baseada em risco específico de cada país, instituição financeira, e organização sem fins lucrativos individualmente consideradas. Ou seja, as medidas de FT devem ser focadas e proporcionais evitando-se soluções únicas do tipo “um tamanho serve para todos”.

[1] FATF, Financial Action Task Force. Risk of Terrorist Abuse in Non-Profit Organisations. Paris: FATF, 2014.


 

Autor: Jorge Lasmar 

Jorge M. Lasmar é CEO da Ágama Business Training e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da PUC Minas. É doutor em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science (LSE). Atua como analista, consultor e palestrante tendo participado de audiências públicas, projetos de pesquisa, cursos de capacitação e consultorias em diversas instituições públicas e privadas no Brasil e no Exterior. É membro de diversas comissões e entidades acadêmicas e profissionais como a Comissão de Certificação Profissional em Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (CPLD-FT, IPLD). Possui trabalhos publicados em cinco línguas, tem ampla experiência como comentarista em mídias nacionais e internacionais e teve seu trabalho reconhecido em vários prêmios, bolsas e condecorações.