Imagem: Adobe Stock Quando Mary Shelley escreveu seu famoso romance Frankenstein, publicado em 1818, o avanço das ciências e da tecnologia moderna estava ocorrendo a todo o vapor na Europa e nas outras partes do globo, revelando ao mundo as verdades presentes nos diversos âmbitos da realidade e suas possíveis utilizações. Em vez de um futuro magnífico, repleto de felicidade, saúde abundante, riqueza econômica e paz social, a autora imaginava o exato oposto disso, conforme representado pelo protagonista de Frankenstein, ou seja, o Monstro. Analisando o fenômeno científico e tecnológico com imparcialidade, não há dúvidas de que houve a produção de conhecimentos valiosos, que acabaram por beneficiar o ser humano em muitos aspectos, desde a longevidade etária, através da descoberta de uma lista interminável de fármacos e procedimentos cirúrgicos, até as comodidades do dia a dia proporcionadas pelos bens materiais que inundam os mercados mundiais a cada ano. Em contrapartida, há que se admitir também que uma série de efeitos colaterais negativos e desastrosos foram causados por aquelas áreas do saber durante estes três últimos séculos de descobertas e invenções. A lista seria imensa; entretanto, contentemo-nos com apenas um único exemplo: a cocaína. Ninguém imaginaria que uma simples pesquisa, realizada em um laboratório na Alemanha, em 1859, encabeçada pelo químico Albert Niemann, que serviu de fundamento para sua tese de doutorado, iria causar tantos danos aos homens e às sociedades futuras. Ao transformar o que era verde em algo branco, convertendo por meio de processos químicos folhas de coca em pó – cujo produto final designou de cocaína –, Niemann, indiretamente, desencadeou inumeráveis fenômenos sociais deletérios que afligem a todos os países, sem exceção, até os dias de hoje. Algumas décadas depois da descoberta da cocaína, o austríaco e pai da psicanálise, Sigmund Freud, passou a empregar a substância com finalidades estritamente terapêuticas, por considerá-la um valioso fármaco, com o poder de produzir ótimos resultados no combate à depressão, a outras patologias psíquicas e ao desconforto gástrico nervoso, além de ser benéfica para o aumento do rendimento físico e intelectual. Ademais, o psicanalista acreditava que a cocaína era incapaz de provocar dependência química em seus usuários, nem tampouco causaria efeitos colaterais prejudiciais à saúde. Seis anos depois, a posição do psicanalista acerca dos benefícios terapêuticos da cocaína sofre uma reviravolta radical. Ao verificar os efeitos danosos causados pelo medicamento milagroso no organismo (tanto à nível físico como psíquico) de seu amigo e paciente Ernst Fleischl, falecido em 1891, para quem havia prescrito o emprego da substância alguns anos antes, Freud concluiu que os seus malefícios eram muito superiores aos benefícios. Depois desse trágico episódio, o pai da psicanálise abandonou a defesa da cocaína, rejeitou tudo aquilo que tinha escrito sobre o assunto, ordenando que tais textos não fossem incluídos em suas obras completas. Nesta altura dos acontecimentos, o uso terapêutico e recreativo das folhas de coca e do pó cristalino já havia se propagado como fogo de palha pelas sociedades do antigo e do velho mundo, para além do divã de Freud, dos laboratórios, universidades, bibliografias científicas, hospitais e clínicas psiquiátricas. A substância era utilizada como matéria-prima para a fabricação de bebidas – dentre as quais o famoso vinho Mariani, apreciado e muito elogiado pelo Papa Leão XIII –, de elixires, fortificantes, colírios, pomadas e até de remédios para dor de dente de crianças. A droga ganhou ainda mais notoriedade com o surgimento da indústria do cinema, cujas mensagens reverberadas de Hollywood em favor de sua utilização influenciaram milhões de pessoas, ao qualificá-la como uma garantida fonte de energia e de alto-astral. Contudo, os efeitos massivos e indesejáveis da droga não tardariam a aparecer. Somente nos Estados Unidos, em 1912, foi registrado a morte de cinco mil pessoas vítimas da cocaína, sendo a mesma oficialmente proibida no país em 1922. A interdição não impediu que a droga fosse comercializada de forma ilegal, principalmente a partir dos anos de 1960 – conhecida como a década psicodélica. Nos anos setenta, o mercado ilegal da substância ganhou maior pujança com a entrada em cena de traficantes colombianos, responsáveis por estruturar uma elaborada rede de contrabando de cocaína para os Estados Unidos. Na medida em que o mercado ilegal da cocaína avançava e se organizava na Colômbia, alastrando-se por diversos países das américas, sob a liderança de fogo de Pablo Escobar, fundador do Cartel de Medellín, um outro fenômeno social, agora de caráter político, ganhava força e um número crescente de adeptos na sociedade colombiana. Influenciadas pela ideologia marxista-leninista e pela Revolução Cubana, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), que já operavam desde 1964, perceberam o quão rentável e útil à causa revolucionária seria envolver-se com o mercado da cocaína. Devido à necessidade e à urgência de obter recursos financeiros para a compra de armamentos, munições, uniformes, alimentação e outras coisas mais, as Farc, em um primeiro momento, conseguiram financiar seu movimento político através da cobrança de impostos de regiões ocupadas por traficantes e da exigência de uma taxa extra em troca de proteção. Alguns anos depois, abriram mão das migalhas tributárias que caíam das mesas dos traficantes, optando pelo controle pessoal de uma significativa parcela da cadeia de produção e distribuição do rentável entorpecente, o que lhes valeu o epíteto de narcoguerrilha – neologismo cunhado pelo embaixador dos Estados Unidos na Colômbia Lewis Tambs. No Brasil, por outro lado, multiplicam-se a cada nova eleição casos e mais casos de políticos que tiveram suas campanhas supostamente financiadas com recursos provenientes do tráfico de drogas, segundo confirmado por quase uma dúzia de operações deflagradas pela Polícia Federal (PF). Ao rastrear as pegadas deixadas pelo dinheiro da cocaína no cenário da política brasileira, a PF conseguiu trazer à luz um esquema criminoso que, até então, operava nas trevas do poder, em benefício de candidatos a cargos eletivos por todo o país, colocando em risco a integridade das instituições e a própria saúde da economia nacional. Em uma entrevista veiculada pela Agência Pública, o delegado Elvis Secco, chefe da Coordenadoria de Repressão às Drogas, Armas e Facções Criminosas da PF em Brasília (DF), foi enfático ao afirmar que “caso não haja a destruição financeira desses caras, isso aqui irá se tornar um México”. Diante de uma ameaça tão grave à sociedade brasileira, medidas urgentes por parte dos órgãos públicos se fazem mais do que necessárias, com o objetivo de eliminar os efeitos destrutivos gerados pelos recursos advindos da comercialização da droga ilícita no país. Os fronts de combate ao narcotráfico são diversos, mas o processo democrático, a porta por meio da qual males ainda maiores podem adentrar no Estado brasileiro, através de alianças firmadas entre pessoas expostas politicamente e integrantes de facções criminosas, necessita de uma atenção especial por parte dos órgãos de persecução penal. A busca por impedir que as ameaças da narcopolítica e de seus epifenômenos se intensifiquem na política brasileira, reproduzindo efeitos análogos aos que se sucederam na sociedade colombiana e mexicana, impõe-se como um dos grandes desafios do nosso tempo. Tal desafio estende-se, outrossim, às pessoas físicas e jurídicas do setor privado, que também estão incumbidas de atuar no sistema financeiro com o propósito de prevenir que o mesmo seja utilizado para práticas ilegais. A apropriação do conhecimento sobre a evolução da cocaína no espaço e no tempo, por exemplo, e de outras drogas ilícitas, juntamente com o modus operandi das organizações criminosas especializadas no comércio ilegal dessas substâncias, é de suma importância para o melhor preparo do profissional de PLD-FT. Porém, a prevenção efetiva dos efeitos decorrentes do narcotráfico na atualidade exige um pouco mais desse tipo de profissional: exige dele a capacidade de estabelecer conexões – até então improváveis no Brasil – entre os recursos obtidos por meio do comércio de drogas ilícitas e as assim denominadas pessoas expostas politicamente. O postulado de que a mentalidade criminosa se encontra em constante processo de aperfeiçoamento, um fenômeno que pode ser verificado com facilidade pelas matérias veiculadas diariamente por agências de notícias, deve servir de estímulo ao profissional de PLD-FT de que a estagnação educacional pesa em favor da permanência de estruturas criminosas, atuantes em todos os níveis da sociedade, desde um simples ponto de venda de cocaína – e de outros tipos de entorpecentes –, situado num lugar ermo de uma cidade qualquer, até o gabinete de uma pessoa exposta politicamente. A habilidade em estabelecer correlações entre realidades criminosas díspares resultará no aumento da qualidade da prevenção, uma conquista que está condicionada, portanto, ao grau de compreensão daquele profissional sobre as novas tipologias criminosas, geradas através de vínculos aparentemente improváveis estabelecidos entre agentes sociais distintos, mas com um único propósito em comum, a saber, a prática de atos ilegais, os quais colocam em risco o bom funcionamento do sistema financeiro e do Estado Democrático de Direito. Autor: Vanderlei Souza Graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia–EST, em São Leopoldo(RS), e licenciado em Filosofia e Sociologia pelo UNIFAI-Centro Universitário Assunção, em São Paulo (SP), trabalha há sete anos em uma empresa especializada em gestão de risco reputacional.