O terrorismo transnacional e o crime organizado têm desafiado as fronteiras e as políticas de segurança de muitos países ao redor do mundo. Com uma miríade de organizações extremistas espalhando suas redes para além de suas regiões de origem, a América do Sul não está imune a essas influências. Entre estas organizações, o Hezbollah tem se destacado, tanto por sua presença quanto pela complexidade de suas operações. Em entrevista exclusiva ao IPLD, Christian Vianna de Azevedo, Agente da Polícia Federal e especialista em contraterrorismo, aborda as dinâmicas do Hezbollah e seu impacto na América do Sul, e como essa influência se manifesta através de atividades legais e ilegais, detalhando as estratégias de financiamento da organização. 1. Considerando sua experiência em contraterrorismo e estudos sobre grupos extremistas, como você avalia a influência do Hezbollah nas comunidades da diáspora na América do Sul e como essa influência se manifesta em atividades legais e ilegais? O Hezbollah começou a infiltrar-se na diáspora libanesa na América do Sul no final da década de 80, um período turbulento marcado pelo auge da Guerra Civil Libanesa, que perdurou de 1975 a 1990. Criado em 1982, o grupo xiita-libanês tinha inicialmente o objetivo de expulsar as forças israelenses do sul do Líbano e combater a influência ocidental, especialmente dos Estados Unidos, na região. Esta fase inicial foi marcada por ataques terroristas significativos, incluindo ações devastadoras contra forças americanas e israelenses em Beirute e outras partes do Líbano. Quando a guerra civil se agravou, mais de um milhão de libaneses emigraram, ao longo desses quinzes anos de guerra, muitos dos quais se dirigiram para a América do Sul, onde já existiam comunidades libanesas estabelecidas, particularmente na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, mas também em locais como Isla Margarita, na Venezuela, e Maicao, na Colômbia. Então, o Hezbollah aproveitou essa migração maciça para inserir seus agentes entre os emigrantes. Esses agentes, já presentes na América do Sul no final dos anos 80, desempenharam papéis cruciais nos ataques terroristas da década de 90, como o ataque à bomba à Embaixada de Israel em 1992 e à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) em 1994. Essas operações foram sustentadas não apenas por atividades ilegais, mas também por empreendimentos legais, como a Agência Piloto Turismo, do Farouk Omairi, que era à época baseada em Cidade do Leste no Paraguai. Eles facilitaram a compra de passagens, acomodações e até providenciaram documentos falsos necessários para a operação dos terroristas do Hezbollah em solo sul-americano. Desde então, o Hezbollah opera diversas redes criminosas na América Latina, não só ali na tríplice-fronteira, mas também na Venezuela, na Colômbia e no Chile, e em vários outros pontos de interesse deles no continente. 2. Como você identifica as estratégias duplas utilizadas pelo Hezbollah para financiar suas atividades? Há diferenças significativas entre as operações de financiamento em regiões como o Oriente Médio comparadas às operações na América Latina? O financiamento do Hezbollah origina-se principalmente de três fontes. A primeira é o Irã, que, conforme indicado pela própria liderança do Hezbollah, representa uma parcela majoritária do financiamento. As outras fontes incluem uma variedade de ações criminosas, tais como lucros advindos do tráfico de drogas, tráfico de armas, contrabando de migrantes, lavagem de dinheiro, e outros tipos de contrabando, além de doações de simpatizantes ao redor do mundo. Atualmente, não existe uma estimativa precisa sobre o montante total dessas “receitas”, mas alguns dizem que cerca de 60% provêm de recursos do Irã, enquanto o restante é dividido entre as ações criminosas e uma fatia menor de doações. Então, as atividades do Hezbollah na América do Sul são uma combinação desses elementos, recebendo fundos do Irã para a realização de atividades específicas, como os atentados na Argentina, como foi inclusive provado por uma recente sentença judicial da Justiça Argentina condenando o Irã por participar ativamente do ataque terrorista de 1994. Portanto, as operações do Hezbollah no Oriente Médio não diferem substancialmente daquelas realizadas aqui. Creio que a maior parte dos recursos oriundos do Irã é destinada ao financiamento das atividades do grupo no Oriente Médio. Suas células espalhadas pelo mundo, porém, dependem mais de doações e de atividades criminosas para sua manutenção. O Hezbollah, baseado no Líbano e no Oriente Médio, também adota diversas estratégias criminosas, incluindo lavagem de dinheiro, remessas ilegais de dinheiro, e o tráfico de uma variedade de drogas, incluindo cocaína e captagon, para financiar suas operações. Globalmente, a estratégia de financiamento baseada em atividades criminosas é uma fonte de renda do Hezbollah, não se restringindo à América do Sul, Oriente Médio, África, Estados Unidos ou América do Norte. Existem vários casos notórios que ilustram como essa rede de financiamento funciona. Um exemplo bastante conhecido é o do Lebanese Canadian Bank, em 2011, quando foi desvendada uma grande operação de lavagem de dinheiro associada ao tráfico de cocaína e venda de veículos usados para a África, investigada pelo DEA americano em parceria com outras agências de segurança pública. Essa operação, que envolvia quatro continentes, demonstra a complexidade e o alcance das atividades financeiras do grupo. 3. Dado o seu conhecimento sobre o crime organizado transnacional, como você percebe a dependência do Hezbollah em relação ao financiamento criminal para sustentar suas atividades terroristas? O Hezbollah realmente depende significativamente do crime organizado transnacional para financiar suas atividades, que abrangem tanto ações terroristas quanto políticas, incluindo assistência social. Afinal, o Hezbollah se estrutura em três pilares: sua atuação política, como partido no Líbano; sua assistência social, prestando apoio nos territórios que controla no Líbano e entre a diáspora; e suas operações paramilitares e terroristas, com alcance global. Apesar de o líder máximo do Hezbollah, Hassan Nasrallah, afirmar frequentemente em seus discursos que o financiamento do grupo provém exclusivamente do Irã, a realidade das atividades do grupo sugere o contrário. Ou seja, as receitas do crime organizado têm sido o subsídio para o Hezbollah poder conduzir suas atividades, sejam elas terroristas, assistenciais ou de suporte político. 4. Em que medida você observa que o Hezbollah tem influência no Brasil, principalmente através do financiamento de negócios legais e ilegais? Quais são os principais desafios para as autoridades brasileiras na monitoração e combate a essas atividades? O Hezbollah de fato se envolve em operações criminosas lucrativas no Brasil, o que já foi evidenciado por diversas investigações concretas realizadas aqui. Há casos de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, entre outros crimes. Então, o Hezbollah usa de sua rede que opera no Brasil e na América do Sul, e suas conexões com outros continentes, para poder financiar suas atividades. Um exemplo é o caso de Farouk Omairi, um membro proeminente do clã, que foi preso e condenado no Brasil por tráfico transnacional de cocaína. Além de cumprir pena, ele foi identificado como um dos logísticos do atentado de AMIA em 1994, segundo decisões judiciais da Argentina. Ele atua em diversas questões logísticas do Hezbollah até hoje. Outro caso notório é do Assad Ahmad Barakat, liderança do clã Barakat, que, juntamente com outros libaneses ligados ao Hezbollah, têm sido atualmente investigados e julgados na província de Misiones, na Argentina, por lavagem de dinheiro em um cassino em Porto Iguaçu e financiamento de terrorismo. Barakat, que vive e tem residência no Brasil, já foi preso no Brasil e por duas vezes foi extraditado para o Paraguai por crimes tributários, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. Além desses, há clãs que operaram tráfico transnacional de cocaína a partir do Aeroporto de Guarulhos e foram presos há poucos anos atrás pela Polícia Federal Brasileira, também ligados ao Hezbollah. Portanto, existem vários casos documentados de envolvimento do Hezbollah em crimes transnacionais e atividades típicas de crime organizado a partir do território brasileiro. 5. Como especialista em estratégia e políticas de defesa, quais estratégias podem ser utilizadas para mitigar a influência de organizações como o Hezbollah que operam dentro do espectro do crime organizado e do terrorismo? Quais são os maiores desafios para o futuro próximo nessa área? O principal desafio que eu vejo para as autoridades brasileiras é a natureza bem estruturada e sofisticada do Hezbollah, que opera de maneira discreta e complexa. Além disso, os membros do Hezbollah não se identificam como atuantes do grupo terrorista. O Brasil tem enfrentado o grupo em muitas operações, justamente investigando os crimes que eles cometem, como: tráfico de drogas, tráfico de armas, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, e não necessariamente crimes de terrorismo ou financiamento de terrorismo, até porque o financiamento de terrorismo é muito difícil de provar. O dinheiro que eles arrecadam, mesmo sendo por meio de crimes, usualmente acaba indo para um “caixa comum” no Líbano, o que complica a separação dos fundos destinados à política, assistência social ou atividades terroristas. Então provar judicialmente é um grande desafio para as autoridades brasileiras e de qualquer país. A dificuldade aumenta porque o Hezbollah opera como uma organização híbrida, atuando tanto como grupo terrorista quanto como organização criminosa transnacional. O desafio para as autoridades é conseguir unir esforços de diversas áreas, públicas e privadas, para enfrentar essa ameaça. É essencial que instituições como bancos, o COAF, e órgãos públicos como a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Justiça Federal, a Receita Federal, o Banco Central do Brasil e Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) tenham uma percepção unificada da ameaça que o grupo representa. Isso é fundamental para uma ação coordenada e eficaz. No entanto, um grande obstáculo é a discrepância na percepção da ameaça entre diferentes instituições. Se uma instituição enxerga o Hezbollah como uma ameaça séria, enquanto outra não, o nível de engajamento para o enfrentamento da ameaça será baixo e não será suficiente. Na minha opinião, o Brasil, por não designar oficialmente o Hezbollah como um grupo terrorista, já que trabalha com o conceito de ato terrorista definido pela Lei Antiterrorismo, acaba não priorizando o combate a esse grupo da mesma forma que faz com organizações listadas pelo Conselho de Segurança da ONU, como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Isso faz com que muitas instituições não vejam as ações terroristas do Hezbollah como uma ameaça imediata (recrutamento, radicalização, facilitação, financiamento e logística do terrorismo, etc) e, portanto, não mobilizem os recursos necessários para combatê-lo de forma efetiva. O que nos atrapalha no enfrentamento ao Hezbollah é a diferença na percepção da ameaça entre as instituições. Por exemplo, a Polícia Federal está muito ciente dos perigos que o Hezbollah representa, mas outras instituições podem não ter essa mesma percepção. Isso ocorre porque, na minha opinião, no Brasil, o Hezbollah não é oficialmente reconhecido como um grupo terrorista. Como resultado, o Brasil, sendo um estado-membro da ONU, adota as designações do Conselho de Segurança para os outros grupos, mas isso não se aplica ao Hezbollah. Portanto, não se prioriza aquilo que não se enxerga como uma ameaça significativa. O Brasil, por exemplo, considera o Primeiro Comando da Capital (PCC) uma ameaça criminosa significativa (ainda que não seja um grupo terrorista), então todas as instituições públicas e privadas reconhecem e tratam o PCC como tal. No entanto, esse não é o caso com o Hezbollah, o que complica o engajamento efetivo e a mobilização de recursos necessários para combatê-lo adequadamente. Isso destaca a necessidade de uma percepção unificada e de uma resposta coordenada entre as diversas instituições para enfrentar grupos híbridos e multifacetados como o Hezbollah. Conheça o entrevistado Christian Vianna de Azevedo Agente de Polícia Federal há 23 anos. Atualmente ocupa o cargo de Subsecretário de Integração da Segurança Pública na SEJUSP/MG. Antes de ingressar na Polícia Federal, foi advogado e consultor tributarista da KPMG International por 4 anos. Doutor e Mestre em Relações Internacionais pela PUC Minas, Bacharel em Direito pela UFMG. Graduado pela National Defense University/Washington – DC nos cursos de “Combate ao crime Organizado Transnacional” e “Estratégias e Políticas de Defesa”. Christian tem capítulos de livros e inúmeros artigos publicados em 3 idiomas. É também professor e conferencista em nível de graduação e pós-graduação no Brasil e no exterior.