09/02/2021

O crime de lavagem de dinheiro e a responsabilidade penal dos profissionais de PLD por omissão imprópria – Parte 1

09/02/2021

 

Com o avanço das tecnologias no campo das transações financeiras, o crime de lavagem de
dinheiro – pensado de uma maneira global – tornou-se cada vez mais complexo e sofisticado, tanto em relação aos crimes antecedentes como também em relação aos próprios métodos de lavagem. Para refrear esta prática criminosa, o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) vem estimulando a adoção de medidas mais propensas a prevenir e combater o crime
de lavagem de dinheiro, especialmente por meio da “Abordagem Baseada em Risco” (ABR) – um método que os órgãos centrais que regulam o tema nos países signatários passariam a impor aos seus regulados, com o objetivo de permitir uma melhor identificação, avaliação e compreensão os riscos de lavagem de dinheiro.

No que toca o setor de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (PLD) no Brasil, os órgãos reguladores passaram a editar normas de PLD prevendo a adoção da ABR. Órgãos como Banco Central do Brasil (BCB), Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por exemplo, regulamentaram a ABR perante suas instituições reguladas, as quais são obrigadas pela Lei n. 9.613/1998 a prevenir o crime de lavagem de dinheiro.

A internalização da ABR pelas regras de PLD visa propiciar uma maior efetividade na condução dos trabalhos dos profissionais que atuam na área de PLD, Compliance e Gestão de Riscos, para que estes possam concentrar seus esforços e energias na análise de situações e operações atípicas de acordo com os riscos derivados, v.g., do perfil dos clientes, canais de distribuição e localização geográfica que apresentem maior chance de operacionalização do crime de lavagem de dinheiro.

Em decorrência desta nova perspectiva regulatória se verifica a necessidade de que sejam estudadas as possibilidades de responsabilização criminal dos profissionais de PLD em relação ao crime de lavagem de dinheiro, nos termos do art. 1º, da Lei n. 9.613/1998. Essa necessidade mencionada recrudesce ao passo de que uma das consequências do fortalecimento do ecossistema regulatório de PLD é que os profissionais que atuam nas corporações reguladas passam a ser mais “visados” por quem pretende lavar dinheiro por meio dos produtos e serviços oferecidos pelas instituições financeiras. Isso se deve essencialmente ao fato de que os profissionais de PLD, em virtude de sua função, possuem informações que permitiram que o processo de ocultação e dissimulação fossem realizados de forma mais segura, seja burlando as regras de monitoramento, seja fazendo “vistas grossas” a eventuais transações suspeitas ou atípicas que deveriam ser comunicadas aos superiores hierárquicos ou mesmo a autoridades como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Destarte, já adiantando a conclusão de que os profissionais de PLD podem efetivamente responder criminalmente por atos de lavagem de dinheiro praticados no âmbito de sua atividade, apresentar-se-á, adiante, os fundamentos pelos quais se acredita que estes profissionais podem ser responsabilizados com base no art. 13, § 2º, do Código Penal Brasileiro (CPB), isto é: o profissional de PLD pode responder criminalmente pelo crime de lavagem de dinheiro com fundamento na omissão imprópria.

A OMISSÃO PENALMENTE RELEVANTE E A ATIVIDADE DE PLD

Quando se fala em responsabilidade criminal por omissão, deve-se entender que o Estado utiliza o direito penal para afirmar que determinadas condutas devem ser praticadas, punindo, portanto, quem não as realiza.

Quando se pensa no crime previsto no caput do art. 1º, da Lei n. 9.613/1998, tão logo se verifica que o tipo penal da lavagem de dinheiro não comporta a chamada omissão própria, pois a redação legal não descreve uma omissão, tal como prescreve, por exemplo, o crime de omissão de socorro (art. 135, do CPB) ou o crime de omissão de notificação de doença (art. 269, do CPB), estruturados pela sentença deixar de (realizar determinada conduta).

Remanesce, então, a análise da possibilidade de se atribuir aos profissionais de PLD a responsabilidade criminal na modalidade da omissão imprópria pelo crime de lavagem de dinheiro, identificando, igualmente, a relevância penal da omissão imputada ao agente.

A omissão imprópria é o mecanismo pelo qual o legislador conseguiu “equiparar” uma omissão, isto é, uma não ação que acaba por ferir um bem jurídico tutelado, a um ato comissivo. Tal possibilidade decorre do texto do art. 13, do CPB, o qual prescreve que o resultado que sustenta uma imputação criminal é endereçado somente a quem lhe deu causa, sendo causa uma ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Pensando no crime do art. 1º, caput, da Lei n. 9.613/1998, se um agente possuir uma obrigação ou um dever de evitar a ocultação ou dissimulação de valores oriundos de infrações penais e, ao perceber a ocorrência do crime, não impede ou interrompe o resultado, lesionando o bem jurídico tutelado – administração da justiça ou ordem econômica – estará aberta a possibilidade de imputação do crime de lavagem de dinheiro por omissão imprópria.

Para a imputação da responsabilidade penal por omissão poder ser reconhecida, no entanto, é precípua a comprovação de que o agente gozava da posição de garantidor no momento em que este se absteve de agir, conforme expressa o art. 13, § 2º, do Código Penal.

O dispositivo mencionado estabelece que a omissão será relevante, do ponto de vista criminal, quando for verificado, no caso concreto, que agente devia e podia agir para evitar o resultado, estabelecendo, ainda, três situações fáticas que permitem averiguar se uma pessoa teria o dever de agir, quais sejam: a) obrigação de cuidado, proteção ou vigilância determinadas por lei; b) assunção da responsabilidade de impedir o resultado; e, c) criação de risco da ocorrência do resultado.

A obrigação de cuidado, proteção ou vigilância determinadas por lei deve ser interpretada de forma stricta, em virtude do princípio da legalidade, sendo vedada a analogia do termo lei para outras fontes normativas ou regulatórias. Não se considera como fonte de obrigação, por exemplo, decretos, portarias, resoluções, dentre outras, de sorte que somente a lei formal tem o condão de gerar obrigações nos termos da do art. 13, § 2º, alínea a, do CPB.

Quanto a assunção da responsabilidade de impedir o resultado – especialmente quando se trata do mundo corporativo – uma de suas principais fontes é a assunção de obrigação decorrente de um compromisso contratual. É possível que este tipo de relacionamento contratual fundamente a posição de garante que uma pessoa possa vir a ocupar, criando, perante este agente, o dever de evitar a ocorrência de determinados crimes. Assim, a responsabilidade de impedir a ocorrência do crime de lavagem de dinheiro poderá derivar, a título de ilustração, de estatutos sociais, contratos de trabalho e prestação de serviços ou mesmo de outros documentos, como políticas, manuais e normas de controles internos que regem a estrutura de governança corporativa de uma determinada instituição.

Por fim, a criação de risco da ocorrência do resultado pode fundamentar a posição de garantidor quando o agente, por meio de seu comportamento prévio, cria um risco que possibilite a lesão a um bem jurídico tutelado pela norma penal. Principalmente em virtude da necessidade de gerenciamento dos riscos empresariais que são intrínsecos a atividade corporativa, o comando dado pelo art. 13, § 2º, alínea c, do CPB, é no sentido de que quem cria (ou aumenta) o risco de operacionalização de um ilícito penal deverá dispender seus esforços para impedir a sua ocorrência.

Para que a omissão seja vislumbrada no caso concreto, portanto, é necessário que fique comprovado que o não-agir tem um nexo causal com o resultado lesivo ao bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro, bem como é indispensável que o agente carregue o dever de impedir – dentro de suas possibilidades – o resultado.

Portanto, pensando na posição ocupada pelos profissionais que lidam com a gestão e mitigação dos riscos de ocorrência do crime de lavagem de dinheiro, para que seja possível sua responsabilização criminal por omissão imprópria, não basta que ao profissional seja imputado a posição de garante simplesmente em virtude de seu cargo; de seu ofício. É preciso que se comprove a possibilidade fática de que este profissional tinha como agir para evitar, por exemplo, a lavagem de dinheiro por meio dos produtos e serviços que são por ele monitorados no âmbito de seu ofício.

Neste ponto, para a apuração da responsabilidade criminal decorrente da omissão imprópria, é indispensável que o agente tenha controle sobre a possibilidade de agir e, consciência de sua capacidade de intervir para, ao menos, refrear o risco de ocorrência do crime de lavagem, tomando, ao fim, as medidas necessárias e compatíveis com sua responsabilidade legal, contratual ou comportamental.

Ante ao narrado até este ponto e estabelecendo um corte de análise, buscar-se-á, adiante, responder a seguinte pergunta: um Diretor de PLD de uma instituição financeira regulada, consciente de seu dever de garante e dispondo de equipe, tecnologia, conhecimento, enfim, de amplas possibilidades que o permitiriam comunicar uma operação ou situação suspeita de lavagem, e mesmo assim não o faz, poderia ser responsabilizado com fundamento na omissão imprópria, caso o
crime de lavagem de dinheiro ocorra?

 

 

Edgard Rocha
Vice-presidente do IPLD. Advogado graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) com intercâmbio em American Law pela University of Delaware-EUA. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).